quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Esse acontecido passou durante uma tarde de sol e frio no inverno gaúcho de 2008, na cidade de Porto Alegre: Ao centro indo de carona em móvel, carro que certa vez foi de boi em estrada de terra – hoje em dia carros, high-ways, combustíveis e combustão, entretantos outros mais. Quando dentro do carro me movia na inércia, depois as pernas e pés eram motores, e assim portanto cruzando as ruas movimentadas seguia eu caminhando. Me encontro na esquina onde o correio se situa, na tarefa de mandar um portfólio e outros papéis ao estado de Santa Catarina. Atravesso a contrução, chão, linhas horizontais dispostas lado a lado e repetidas vezes, cruzadas por linhas verticais em plano único: ladrilho, é ladrão, o roubo de atenção – mas aqui fazendo-se chão, fronteira, divisa. Sigo subindo degraus e escadas, passando pela transparente porta de vidro e no balcão adquiro ficha letrada e numerada: B365 é o código recebido correspondente ao envio de cartas, telegramas e outros tipos de mandados. De uma maneira estranha seu númeral encaixava com a letra, lembrando-me memória de fato ainda não acontecido - em função de maior detalhamento, faço um entre meio que diz; toda a paisagem daquele instante fazia lembrar algo de que se tinha saudades, porém esse “que” nunca havia sido visto por aqueles olhos antes: no erro de se dividir um dia do outro, perde-se na vida uma continuidade à qual conectava antes uma memória plural ao individuo... Me fixei em verificar os papéis que estavam por ser enviados, enquanto que, com os cantos dos olhos cuidava o painel que anunciava a ordem dos remetentes. A luz vermelha sobre o fundo preto piscava enquanto a campainha do painel sonava a chamada. Com a proximidade da vez, saquei a ficha do bolso afim de tê-la em mãos: quando enxerguei o código percebi que o número antes identificado com absoluta certeza não era o mesmo que havia tirado do bolso - admiro com assombro a impressão digital de tinta negra sobre papel amarelo: B362. Penso em como poderia isso ter acontecido, teria eu simplesmente visto um número que ali não estava? Meus sentidos me enganaram e enquanto novamente me dirigia à central das fichas pensava nisso. Ainda no caminho percebi: o engano da minha percepção havia sido proposital, uma jogada do inconsciente para driblar o rotineiro; a segunda intenção até então camuflada, sub-intuitiva, nesse ponto por mim foi absorvida. Chegando ao balcão central peguei outra ficha e comentei minha distração com a atendente; risadas, enquanto no imaginário se erguia o mapa da construção descritiva desses fatos algo ilógicos: agora os correios eram um mero cenário e a tarefa de enviar os documentos um motivo-acaso. A certeza era enganadora ao enxergar certo código errôneo, e consequentemente era esse engano a descoberta intuitiva de inconclusa conclusão: a criação de um paralelo onde as casualidades explicam todas as racionalidades. Nesse momento sentei nas confortáveis poltronas da espera, tirei da mochila caneta e caderno e me pus a descrever vagamente os fatos. Ouvindo abstrato som quando se está submerso no mar de letras, sopa de criança cheia de frases a serem devoradas, gosto de novo; cada palavra levava o peso e o tempo de lentos dias daqueles vazios ou rápidas horas daquelas percorridas pelas idéias que nos levam a tantos lugares sem sair de onde se está - por isso não se sabe uma definição exata do peso das palavras, são medidas mutantes pela sua natureza de intenção, entonação e descrição – enquanto isso, girando no ponteiro dos minutos iam umas voltas assim não muitas. Novamente o painel digital piscava códigos vermelhos sobre fundo preto, a campainha soava e entre os cantos dos olhos eu observava, já interado da nova ficha inscrita e da nova história descrita que ocupava mente e mãos. À medida que os números avançavam no painel desenvolvia as palavras, as sequências dos fatos, sobre a instância localizada nos confins do representar, formas delineadas decorrentes, uma linha-prosa representativa da imagem ia mirando ao longe a conclusão inconclusa – B376 o painel anuncia no guichê 17. O tempo contido entre a primeira chamada, ao mesmo errônea e certeira, e esta foi suficiente para que organizara pensamentos traduzidos pela esferográfica, como assim fossem a base metafórica e sútil, esqueleto feito de frases e articulações prosaicas e poéticas, o corpo pré-moldado do literário. Levantei-me e fui até o guichê anunciado, comentei novamente e intencionalmente o “ente” esquecimento com outro atendente, ele por sua vez me ignorou com expressão de indiferença: selo, cola, carimbo e pagamento; durante o trajeto, o imaginário persistia na construção fictícia do ato verdadeiramente controverso ao verso. Ao manualmente escrever o destinatário, em letras vermelhas e garrafais sobre envelope ocre, depositei-o na opção “outros estados” e vi o parágrafo derradeiro desse relato, como se o substantivo empregado para distintas regiões -estados- trouxera o adjetivo estado diferenciado peculiarmente no espírito: ao trocar um dois por um cinco, o inconsciente acha uma brecha e consegue desenvolver com um fato do acaso uma lógica, usando o consciente somente como ponte: a tradução do que é indescritível ganha mais uma versão.

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